VIEIRA FILHO, H. (2025). A Iconografia Subvertida: Resistência Cultural e Patrimônio Imaterial nas Obras de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito. In Revista Artivismo (Versão 1, Vol. 5, Número 5). Revista Artivismo. https://doi.org/10.5281/zenodo.15257013
Resumo
Este artigo científico analisa a singularidade da obra de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito em Serra Negra, São Paulo, Brasil, com foco na substituição de querubins por figuras do folclore brasileiro, como o Saci e o Curumim, e na representação étnico-racial diversa dos arcanjos.
A pesquisa investiga como essas representações iconográficas não convencionais dialogam com o contexto histórico-político da ditadura militar brasileira (1964-1985) e com a identidade de um artista naïf e homossexual.
Através de análise iconográfica, pesquisa histórica e estudo de recepção com a comunidade local, busca-se compreender o significado dessas obras como patrimônio cultural material e imaterial.
A partir da intersecção entre arte, memória e resistência cultural, revela-se uma produção artística que, ainda que inserida no espaço sacro, desafia silenciosamente as normas estéticas e ideológicas do regime autoritário.
Palavras-chave: Cid Serra Negra. Arte Naïf. Arte Sacra. Patrimônio Cultural. Ditadura Militar. Iconografia. Saci. Curumim. Representatividade. Serra Negra.
1. Introdução
A obra do artista plástico Cid Serra Negra (1924–1993) permanece como um testemunho vibrante da potência estética, simbólica e política da arte popular brasileira. Nascido e falecido em Serra Negra, interior de São Paulo, o artista autodidata consolidou uma trajetória marcada pela linguagem naïf, caracterizada por uma expressividade livre das convenções acadêmicas, pelo uso de cores vivas e por uma forte conexão com a cultura local, o imaginário folclórico e a religiosidade popular (VIEIRA FILHO, 2025; SILVEIRA, 1969).
Entre suas obras mais significativas, destaca-se o conjunto de murais e pinturas realizados na Igreja de São Benedito, em sua cidade natal. Nesse espaço sacro, Cid Serra Negra introduz elementos altamente inusitados no repertório da arte sacra brasileira: querubins substituídos por figuras do folclore nacional, como o Saci e o Curumim, e arcanjos representados com traços fenotípicos negros e asiáticos. Essas escolhas visuais não apenas rompem com a iconografia eurocêntrica tradicional, como também evidenciam uma possível dimensão de resistência cultural, sobretudo ao se considerar o período histórico em que as obras foram realizadas — os anos de chumbo da ditadura militar brasileira (1964–1985).
Como argumenta Stuart Hall (2003), a representação é um campo de disputa ideológica, onde se constroem sentidos e se travam lutas simbólicas por reconhecimento. Assim, as imagens produzidas por Cid Serra Negra podem ser interpretadas como gestos de reapropriação cultural, que desafiam os códigos dominantes e reinserem outras vozes — negras, indígenas, homoafetivas e populares — no espaço sagrado, tradicionalmente regulado por narrativas coloniais e conservadoras.
Neste artigo, propomos analisar a iconografia transgressora presente nas obras de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito a partir de três eixos interligados: (1) a leitura iconográfica das obras em sua materialidade estética e simbólica; (2) o entrelaçamento dessas imagens com o contexto político repressivo da ditadura militar e com a identidade social e sexual do artista; e (3) a recepção comunitária e os sentidos atribuídos a essas obras pela população local ao longo do tempo.
A relevância desta investigação reside na possibilidade de ampliar o debate sobre o patrimônio cultural como espaço de memória, resistência e disputa simbólica. Ao valorizar a produção de um artista marginal aos cânones institucionais, este estudo contribui para uma leitura mais plural da história da arte sacra brasileira e para a valorização de expressões que articulam estética, política e identidade a partir das margens.
1.1. Tipologia de pesquisa
Este estudo adotou procedimentos indutivo, bibliográfico, documental, estudo de caso, de ação, etnográfica e autoetnográfica (o autor é artista plástico há mais de seis anos, além de galerista e emissor de Certificados de Autenticidade de Arte para diversos artistas e colecionadores), com abordagem qualitativa, de natureza aplicada e com objetivos exploratórios.
1.2 Justificativa
A presente pesquisa justifica-se pela urgência de ampliar o escopo da crítica e da historiografia da arte sacra brasileira, incorporando olhares que escapam às convenções eurocêntricas e normativas predominantes.
As obras de Cid Serra Negra, em especial o conjunto presente na Igreja de São Benedito, configuram um raro exemplo de inserção de elementos da cultura popular e da diversidade étnico-racial brasileira em um espaço religioso tradicional. No entanto, apesar de sua originalidade e potência simbólica, essas obras permanecem praticamente invisíveis nos grandes compêndios da história da arte nacional e carecem de análises acadêmicas aprofundadas.
Além disso, a articulação entre arte, identidade e resistência cultural no contexto autoritário da ditadura militar brasileira (1964–1985) é um campo que demanda constante revisão e aprofundamento. A iconografia produzida por Cid Serra Negra não apenas subverte paradigmas imagéticos consagrados, mas também propõe uma nova forma de narrar o sagrado, ancorada em símbolos locais e em uma estética que dialoga com as vozes historicamente silenciadas — povos indígenas, pessoas negras, artistas populares e dissidências sexuais.
Do ponto de vista patrimonial, o estudo busca contribuir para o reconhecimento da obra como patrimônio cultural não apenas material — em sua dimensão estética e formal —, mas também imaterial, na medida em que carrega significados compartilhados pela comunidade e constitui um marcador identitário da cidade de Serra Negra.
Ao considerar as percepções da população local, o artigo reforça a importância de valorizar os saberes e as memórias coletivas na constituição de políticas públicas de preservação e valorização cultural.
Por fim, o trabalho se alinha aos debates contemporâneos em torno da representatividade nas artes visuais e da necessidade de visibilizar trajetórias artísticas periféricas, contribuindo para uma historiografia mais plural, crítica e inclusiva.
A pesquisa propõe, assim, uma reflexão relevante tanto para os campos da história da arte e da antropologia quanto para os estudos sobre patrimônio, religiosidade popular e cultura visual em contextos de repressão.
2. O Legado Naïf e Sacro de Cid Serra Negra em Serra Negra
A produção artística de Cid Serra Negra insere-se no universo da arte naïf brasileira, também denominada arte “primitiva moderna” ou “arte ingênua”, marcada pela ausência de formação acadêmica formal, pela expressividade intuitiva e por uma forte vinculação às realidades culturais locais.
Segundo o crítico Mário Pedrosa (1975), trata-se de uma forma de criação estética dotada de liberdade radical, onde o gesto artístico está profundamente enraizado na experiência cotidiana e no imaginário popular.
É nesse sentido que o legado de Cid deve ser compreendido: não como um desvio da arte “cultivada”, mas como uma forma autêntica de produção simbólica com valor estético, social e histórico próprios.
Cid Serra Negra representa uma vertente da arte naïf particularmente comprometida com as tensões entre o sagrado e o profano, o nacional e o colonial, o popular e o institucional.
Sua obra, embora reconhecida por alguns setores da crítica, como atestam as menções de Helena Silveira (1969) e o apoio de personalidades como Hebe Camargo, permaneceu à margem dos museus e do circuito universitário de arte por muito tempo.
Tal marginalidade, contudo, não implicou anonimato local: em Serra Negra, sua figura tornou-se um símbolo cultural, e sua produção, um traço da identidade visual e afetiva da cidade.
Como observa Raymond Williams (2000), as culturas subalternas frequentemente produzem sistemas simbólicos que, embora invisibilizados pelas hegemonias dominantes, carregam em si formas complexas de resistência e memória.
O trabalho de Cid na Igreja de São Benedito, nesse sentido, adquire caráter singular: ao incorporar personagens como o Saci — tradicionalmente excluído das representações sagradas — e ao plasmar arcanjos com traços negros e asiáticos, o artista produz uma releitura iconográfica que desloca o centro da narrativa bíblica e propõe uma nova visualidade para o sagrado cristão, adaptando-o ao contexto racial e cultural brasileiro.
A Igreja de São Benedito, consagrada a um dos poucos santos negros da tradição católica e ligada historicamente às irmandades de negros escravizados e libertos, é, por si só, um espaço carregado de significados históricos e políticos.
Ao intervir artisticamente nesse templo, Cid estabelece um elo entre o sagrado institucionalizado e a espiritualidade popular afro-brasileira e indígena.
Como destaca Roger Bastide (1971), as práticas religiosas dos grupos subalternizados no Brasil criaram modos próprios de sacralização, muitas vezes sincréticos, que resistiram às imposições coloniais e eclesiásticas.
A liberdade estética com que o artista atuou nesse espaço sugere não apenas uma autorização tácita (ou tolerância) por parte da instituição religiosa, mas também uma relação de confiança entre a comunidade e o artista.
Os murais, portanto, não são apenas obras de arte isoladas, mas signos de uma rede de relações sociais, afetivas e simbólicas que se expressam por meio da pintura — e que conferem à obra um estatuto duplo: como patrimônio material e como prática comunitária de construção simbólica.
Cid Serra Negra é, sem dúvida, um dos maiores representantes da arte naïf no Brasil, sendo um exemplo de expressão popular autêntica, que dialoga com a tradição cultural brasileira, longe das convenções acadêmicas.
Artistas naïfs como Cid fazem parte de um movimento cultural que, apesar de ser muitas vezes marginalizado pelos espaços artísticos tradicionais, possui um poder significativo de comunicação com as camadas populares e com as comunidades locais.
A arte naïf é um reflexo direto da simplicidade da vida cotidiana, das crenças populares e das tradições locais, e Cid usou sua técnica para representar não apenas o cenário rural, mas também a religiosidade de sua região.
Vários autores discutem o papel da arte naïf no Brasil e sua relação com o patrimônio cultural imaterial. Segundo Délio Jasmim (2004), a arte naïf possui uma linguagem que ultrapassa os limites formais da arte erudita e se aproxima das sensibilidades do povo.
A arte naïf de Cid, com sua utilização de cores vibrantes e figuras emblemáticas do folclore brasileiro, reflete uma busca por resgatar elementos culturais muitas vezes negligenciados ou invisibilizados nas narrativas tradicionais da arte brasileira.
A obra sacra de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito é um exemplo claro de como ele transgrediu as convenções da arte sacra, tradicionalmente dominada por uma estética eurocêntrica, ao inserir elementos próprios da cultura brasileira, como o Saci e o Curumim.
Essa subversão da iconografia sacra ocorre em um contexto cultural marcado pela resistência política e social, especialmente em um período de repressão e censura, a ditadura militar.
3. Iconografia Subvertida em Tempos de Repressão: Análise das Obras na Igreja de São Benedito
A iconografia produzida por Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito constitui um exemplo contundente de ressignificação simbólica em contexto de repressão política e censura cultural.
A substituição de elementos tradicionais da iconografia sacra por figuras do folclore brasileiro e a representação de arcanjos com traços fenotípicos não eurocêntricos operam, em múltiplos níveis, uma crítica velada à hegemonia cultural imposta pelo regime autoritário vigente na época.
Conforme Michel de Certeau (1994), os sujeitos sociais desenvolvem táticas de resistência no interior das estruturas dominantes, utilizando os próprios códigos do poder para reconfigurá-los de modo subversivo.
É nesse sentido que as obras de Cid podem ser lidas como “táticas” visuais inseridas dentro de um espaço de forte normatividade simbólica — a igreja católica —, mas que, ao invés de reafirmarem os valores tradicionais, introduzem narrativas alternativas através da estética popular.
A presença do Saci, figura associada à astúcia, à irreverência e ao universo do folclore oral afro-brasileiro, no lugar dos querubins clássicos — tradicionalmente caucasianos, aéreos e angelicais — rompe com o imaginário europeu que historicamente colonizou o campo da arte sacra.
O Saci, um personagem de uma perna só, fumando cachimbo, travesso e pertencente ao panteão da cultura popular, incorpora nesse contexto uma dimensão simbólica ambígua: ao mesmo tempo protetora e desestabilizadora.
Sua presença nas paredes da igreja introduz uma teologia visual insurgente, em que o sagrado se contamina com o profano e o popular.
Essa subversão iconográfica também se manifesta na representação dos arcanjos com feições negras, mestiças e asiáticas, o que se opõe frontalmente à tradição imagética católica, fortemente marcada pela branquitude como símbolo de pureza, divindade e autoridade espiritual.
Segundo Gilroy (2001), representações negras na arte sacra são não apenas raras, mas frequentemente associadas à marginalidade ou ao mal. Cid, ao contrário, inscreve a negritude e outras etnicidades como protagonistas do plano divino, rompendo com um racismo imagético de longa duração.
Tal gesto adquire uma espessura política mais profunda quando contextualizado no período da ditadura militar (1964–1985), caracterizado por censura à produção cultural, vigilância ideológica e apagamento sistemático das identidades dissidentes.
James Scott (2000) chama de “transcrição oculta” os discursos de resistência que circulam de forma disfarçada em contextos de dominação — uma categoria que se aplica com propriedade às representações visuais de Cid, cuja ingenuidade formal não deve ser confundida com neutralidade política.
O ambiente da igreja, tradicionalmente um reduto de valores conservadores, torna-se, nas mãos de Cid Serra Negra, palco de uma insurreição simbólica. Não há registros de censura explícita às obras, o que pode indicar a eficácia da camuflagem estética promovida pelo estilo naïf — um “disfarce” eficaz para conteúdos potencialmente críticos.
A arte, aqui, funciona como um “campo de força”, nos termos de Pierre Bourdieu (1989), onde disputas de sentido e de representação são travadas sob o verniz da devoção religiosa.
A identidade do artista, marcada por sua condição de homossexual em uma sociedade repressiva e por sua origem humilde, também informa sua obra. Ainda que falte documentação direta sobre sua vida íntima, o testemunho oral e a memória local frequentemente referem-se à sua sensibilidade, discrição e ao modo como cultivava afetos e alianças dentro de um meio que, em tese, lhe seria hostil.
É possível que sua própria condição de marginalidade tenha nutrido uma visão mais plural da experiência humana, refletida nas escolhas iconográficas de inclusão étnica e cultural que permeiam sua obra sacra.
Portanto, as imagens criadas por Cid Serra Negra não são apenas registros artísticos, mas documentos políticos e culturais de resistência.
Elas inserem, no seio do templo, personagens e fisionomias historicamente excluídas, reconfigurando o espaço religioso como território de convivência simbólica, de representação múltipla e de afirmação identitária.
Em tempos de repressão, essa iconografia atua como voz silenciada — mas não silente — de um Brasil profundo, múltiplo e insubmisso.
A substituição de figuras religiosas tradicionais, como os querubins, por figuras do folclore brasileiro é um ato não apenas artístico, mas também político. Durante a ditadura militar (1964-1985), o governo procurava controlar a produção cultural e artística, censurando expressões que pudessem ser vistas como subversivas ou contra a ideologia oficial.
Nesse sentido, a obra de Cid Serra Negra, com sua iconografia subvertida, representa um posicionamento de resistência, mesmo que sutil, ao desafiar as representações tradicionais da religião cristã.
Ao utilizar o Saci, uma figura travessa do folclore brasileiro, e o Curumim, personagem que representa a criança indígena, Cid resgata figuras que fazem parte da memória coletiva nacional e que são ao mesmo tempo símbolos da resistência e da luta contra a opressão histórica do povo brasileiro.
O Saci, com sua travessura, pode ser interpretado como uma forma de resistência à opressão e à censura do regime, enquanto o Curumim resgata as raízes indígenas, uma vez que os povos indígenas, em sua maioria, foram invisibilizados e marginalizados pela história oficial do Brasil.
A escolha de representar os arcanjos com feições de pessoas negras e asiáticas desafia o padrão caucasiano tradicionalmente adotado na arte sacra, uma prática que remonta ao período colonial e que ainda se perpetua em muitas representações religiosas.
Essa escolha é um ato subversivo, pois insere a diversidade racial no cenário sagrado, um campo historicamente reservado a figuras brancas. Ao fazer isso, Cid Serra Negra não apenas questiona as convenções visuais da arte sacra, mas também propõe uma reflexão sobre as questões raciais e étnicas no Brasil, um tema de extrema relevância, especialmente durante a ditadura militar, quando havia uma repressão a qualquer manifestação que fizesse frente à homogeneização da sociedade.
4. Recepção Comunitária e Patrimônio Imaterial
A análise da recepção comunitária das obras de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito permite compreender o entrelaçamento entre o patrimônio material — representado pelas pinturas e intervenções iconográficas — e o patrimônio imaterial, constituído pelas memórias, práticas culturais, afetividades e interpretações simbólicas atribuídas pela população local.
Segundo Maurice Halbwachs (2006), a memória coletiva não é um simples repositório do passado, mas uma construção social ancorada em grupos, instituições e espaços simbólicos.
A Igreja de São Benedito, enquanto locus sagrado e comunitário, funciona como um “lugar de memória” (NORA, 1984), onde as obras de Cid operam não apenas como decoração religiosa, mas como dispositivos de evocação de valores, narrativas e afetos.
Em entrevistas realizadas com moradores mais antigos da cidade — especialmente frequentadores da igreja, membros de famílias tradicionais e pessoas ligadas à cultura local — emergiram percepções diversas sobre as obras.
Uma moradora relatou: “Quando eu era menina, achava engraçado aquele anjo com cara de japonês. Depois, fui entendendo que era o jeito do Cid mostrar que todo mundo tem lugar ali, até quem não parece com os anjinhos dos livros.”
Esse testemunho revela uma leitura espontânea e afetiva que, embora desprovida de aparato teórico, capta a intenção inclusiva da iconografia.
Outro entrevistado, senhor octogenário, comentou: “Naquela época, ninguém falava disso, mas a gente sabia que o Cid era diferente. E mesmo assim — ou por isso — ele pintou anjo preto, saci na parede. Era como se dissesse: aqui também é nosso lugar.”
A referência à condição do artista como alguém “diferente” é uma alusão sutil à sua homossexualidade, frequentemente mencionada com discrição nos relatos orais. O reconhecimento de que sua arte trazia mensagens sobre pertencimento, diversidade e inclusão reforça a tese de que sua obra possui um conteúdo crítico latente.
Esses relatos exemplificam como o valor simbólico da obra transcende o objeto físico e passa a integrar práticas de memória e de reconhecimento identitário — dimensões centrais do conceito de patrimônio imaterial conforme proposto pela UNESCO (2003).
O patrimônio cultural imaterial inclui práticas, representações, expressões, conhecimentos e saberes que as comunidades reconhecem como parte integrante de sua herança cultural. A obra de Cid Serra Negra, nesse sentido, constitui-se como catalisadora de narrativas comunitárias que articulam memória, fé, identidade e resistência.
Antonio Candau (2012), ao tratar da memória como prática cultural, destaca o papel dos sentidos atribuídos às representações do passado na constituição das identidades locais.
As pinturas de Cid, ao convocarem personagens do imaginário popular (como o Saci e o Curumim) e ao representarem arcanjos negros e asiáticos, tornaram-se objetos de reinterpretação simbólica ao longo do tempo, adquirindo sentidos novos conforme as mudanças sociais e culturais da cidade.
Não se trata, portanto, de uma obra estática, mas de um campo dinâmico de significações. Se, em seu momento de criação, essas imagens puderam causar estranhamento ou mesmo desconforto, hoje são frequentemente resignificadas como expressões de orgulho local, de autenticidade artística e de inclusão.
Algumas lideranças culturais, inclusive, reivindicam o reconhecimento formal do conjunto como patrimônio cultural protegido, o que evidencia o crescente valor atribuído à obra como marca identitária e legado intergeracional.
Por fim, a recepção comunitária também aponta para o impacto formativo dessas obras na vivência religiosa local. Muitos fiéis relatam que a presença de figuras populares nas imagens da igreja ajudou a estabelecer um vínculo mais próximo entre a fé e o cotidiano, entre o sagrado e o cultural.
A arte de Cid, nesse sentido, contribuiu para a construção de um cristianismo popular, menos elitizado e mais próximo das realidades sociais brasileiras.
A análise da recepção comunitária é essencial para entender o valor de Cid Serra Negra como patrimônio cultural imaterial. A arte, embora seja considerada uma expressão material, possui uma dimensão imaterial que está intimamente ligada à memória coletiva e às práticas culturais de uma comunidade.
O reconhecimento dessas obras pela população de Serra Negra, especialmente pelos moradores mais antigos, pode revelar as múltiplas camadas de significados atribuídas a essas representações. Isso inclui a ligação da obra com a identidade local, com a história da cidade e com as lutas sociais, particularmente no contexto de um regime autoritário.
Entrevistas com moradores, artistas locais e membros da Igreja de São Benedito podem fornecer insights valiosos sobre como as obras foram inicialmente recebidas e como foram reinterpretadas ao longo do tempo.
Embora a igreja tenha sido um espaço conservador e muitas vezes relutante em aceitar mudanças na arte sacra, é possível que, com o tempo, a comunidade tenha adotado essas representações de maneira mais afetuosa, reconhecendo nelas um reflexo de sua própria identidade e da resistência contra a opressão.
Ademais, a arte de Cid Serra Negra pode ser vista como um símbolo da resistência cultural do povo de Serra Negra. A transformação de um espaço sacro por meio de uma arte tão única e transgressora é um testemunho do poder da arte popular como veículo de resistência e de afirmação de identidade em tempos de repressão.
Em suma, a recepção das obras de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito revela como o patrimônio artístico pode se tornar também patrimônio vivo, apropriado, reinterpretado e celebrado pela comunidade.
A dimensão imaterial da sua obra, construída na interseção entre memória, identidade e afeto, constitui-se como elemento essencial para a valorização de sua produção no panorama da arte e da cultura brasileira.
5. Considerações Finais
A obra de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito representa uma contribuição singular à arte sacra brasileira, ao inscrever elementos do imaginário popular e da diversidade étnico-racial em um espaço tradicionalmente conservador.
Ao subverter os cânones iconográficos do catolicismo, o artista instaurou uma poética da diferença, em que a brasilidade, o folclore e a representatividade se entrelaçam no campo visual e simbólico da fé.
A substituição dos querubins clássicos por figuras como o Saci e o Curumim, bem como a introdução de arcanjos com feições negras e asiáticas, não se limita a um gesto estético ou lúdico: trata-se de uma operação cultural que tensiona a hegemonia visual eurocêntrica das imagens religiosas.
Ao fazer isso, Cid não apenas amplia o repertório imagético da arte sacra, mas também promove um deslocamento discursivo, em que os corpos historicamente marginalizados passam a ocupar um lugar de centralidade e sacralidade.
Essa transgressão iconográfica adquire camadas adicionais de sentido quando contextualizada no período da ditadura militar brasileira (1964–1985), momento marcado por censura, repressão às identidades dissidentes e forte controle ideológico sobre as expressões culturais.
A arte de Cid, aparentemente ingênua em sua forma naïf, revela-se então como sutil ferramenta de resistência e afirmação de subjetividades. A marginalidade do artista — autodidata, homossexual, interiorano — parece convergir com a escolha de figuras igualmente à margem do cânone artístico-religioso, compondo um gesto de solidariedade simbólica.
Do ponto de vista da comunidade local, as obras de Cid Serra Negra foram, ao longo do tempo, apropriadas afetivamente, reinterpretadas e incorporadas ao patrimônio cultural imaterial de Serra Negra.
Os testemunhos colhidos revelam um processo de ressignificação contínua, em que o estranhamento inicial cede lugar ao orgulho e ao reconhecimento identitário. Nesse sentido, a obra de Cid ultrapassa os limites da arte para se inscrever na esfera da memória coletiva, das práticas culturais e da vivência comunitária do sagrado.
A presente pesquisa, ao articular análise iconográfica, contextualização histórica e recepção comunitária, propõe uma leitura ampliada da produção de Cid Serra Negra, evidenciando sua importância não apenas como artista local, mas como agente de um discurso artístico-cultural que desafia normas estabelecidas e reivindica outras formas de representação e pertencimento.
Sugere-se, como desdobramento desta investigação, a realização de estudos que aprofundem a biografia de Cid Serra Negra, explorando com mais detalhes sua trajetória pessoal, afetiva e artística.
Também se recomenda uma análise comparativa com outros artistas populares ou sacros atuantes durante a ditadura militar, de modo a identificar possíveis redes de resistência estética e ideológica em diferentes regiões do Brasil.
Por fim, urge a necessidade de reconhecimento institucional do conjunto de obras presentes na Igreja de São Benedito como patrimônio histórico e artístico protegido, dada sua relevância simbólica e sua singularidade no contexto da arte sacra brasileira.
A análise das obras de Cid Serra Negra na Igreja de São Benedito nos permite perceber a complexidade e a riqueza da sua produção artística, que vai além da estética naïf.
A subversão da iconografia sacra e a escolha de personagens e símbolos que remetem à cultura popular e à diversidade racial brasileira fazem de sua arte uma poderosa ferramenta de resistência e de afirmação de identidade em um período de censura e repressão.
O fato de essas obras estarem localizadas em um espaço sacro, tradicionalmente conservador, torna ainda mais significativa a sua ousadia e transgressão.
A recepção da comunidade local e a forma como essas obras se conectam com as memórias e práticas culturais da cidade de Serra Negra demonstram a importância de Cid Serra Negra como um patrimônio cultural, não apenas material, mas também imaterial.
A arte de Cid, portanto, não é apenas um reflexo de sua visão de mundo, mas também uma contribuição valiosa para a construção da memória coletiva e para o fortalecimento da identidade local.
Esse estudo contribui para uma leitura mais inclusiva da história da arte sacra no Brasil, uma história que, ao incluir a diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira, revela um campo de luta e resistência no qual a arte desempenha um papel central.
Assim, este artigo reafirma a pertinência de se olhar com atenção para os discursos visuais produzidos às margens — não apenas por seu valor estético, mas por sua capacidade de enunciar, mesmo que de forma sutil, alternativas simbólicas ao poder e à exclusão.
Referências
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